Santa Maria: medicamento ficava dez horas fora do frigorífico

“Isso não são alíquotas verdadeiras. Foi para a reportagem fotográfica.” Sónia Baptista, a técnica de diagnóstico e terapêutica que esta quinta-feira começou a ser julgada, junto com o colega farmacêutico Hugo Dourado, pelo crime de ofensa à integridade, tentava explicar ao colectivo de juízes, observando imagens no processo, como era possível, numa seringa com a largura do dedo mindinho, escrever o nome do medicamento, a data de elaboração da seringa, a dosagem, as condições de preparação e o prazo de estabilidade, avança o ionline.

A questão foi uma das muitas levantadas esta quinta-feira sobre os procedimentos de segurança no Hospital de Santa Maria, no arranque do julgamento do caso que levou à cegueira de seis doentes em Julho de 2009.

Alíquota foi provavelmente a palavra mais repetida durante a audiência, quatro horas para Hugo Dourado e uma hora, já ao final da tarde, para Sónia Baptista, que voltará a depor no próximo dia 9. A alíquota é o resto de um medicamento que vem em ampolas demasiado grandes para usar de uma só vez, e fica guardado numa seringa, como com o Avastin, o medicamento no centro deste caso. Este fármaco é usado em tratamentos oncológicos, mas nos últimos anos começou também a ser utilizado em tratamentos oftalmológicos, por exemplo, para a degeneração macular da idade, por ser idêntico a um outro medicamento específico para esta doença, mas que sai cerca de 40 vezes mais caro por dose.
Perante o colectivo de juízes, os dois arguidos negaram que, à data dos factos, existisse um manual de procedimentos na unidade de preparação de citotóxicos, a valência da unidade de produção de estéreis onde trabalhavam e de onde saíram as seringas para o bloco operatório.

Manuais

A questão surge do facto de o processo incluir dois alegados manuais de procedimentos para esta valência, o primeiro entregue logo na semana a seguir ao incidente, com a inscrição “em actualização”, e o outro entregue em Setembro do mesmo ano à PJ, com a data de 2007.

Hugo Dourado, hoje com 31 anos, disse não existir qualquer manual e que todas as instruções eram comunicadas “verbalmente” pela coordenadora da unidade, Regina Lourenço, arrolada como testemunha no processo.

Os dois manuais no processo são os mesmos e foram elaborados pelo farmacêutico e outra colega, a pedido de Regina Duarte, “à pressa”, para que houvesse algo para entregar à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Sónia Baptista, hoje com 26 anos e quem preparou as seringas que viriam a ser administradas aos seis doentes, confirmou a ausência de manual, explicando aos juízes que aprendeu os procedimentos com as colegas e adiantando que as instruções partiam de Regina Lourenço e que algumas coisas “não faziam sentido”. É o caso da que se segue: um mês antes do incidente, segundo os depoimentos de esta quinta-feira, Regina Lourenço terá comunicado que, dali para a frente, as tais seringas com sobras de ampolas de medicamentos, entre eles o Avastin, passariam a ir logo pelas 8h da manhã para a sala onde se fazem as preparações, deixando de ser verificadas primeiro na sala de apoio e depois na chamada “sala limpa”.

Estas alíquotas passaram a ser levadas todas no mesmo tabuleiro, independentemente de terem fármacos diferentes e de alguns precisarem de estar no frigorífico. No caso concreto do Avastin, a informação na seringa especificava que devia ser conservado a uma temperatura de 2 a 8 graus. Todos os dias estaria pelo menos dez horas à temperatura ambiente, caso a seringa não ultrapasse o “prazo de validade”, cerca de 48 horas após a elaboração da alíquota.

Sónia Baptista só teve uma hora para depor, mas Hugo Dourado teve oportunidade de expressar a sua visão sobre o caso: sustenta que foi precoce concluir que terá havido uma troca de medicamentos quando há indícios que poderiam fundamentar contaminação microbiológica do preparado (as análises a três dos seis doentes revelaram a presença de bactérias Streptococcus pneumoniae). Por outro lado, acredita que as perícias legais para determinar se o telefonema anónimo que denunciou uma sabotagem das seringas com cavalinha não podem ser consideradas conclusivas, porque não despistaram todos os elementos deste fármaco.

A defesa questionou a ausência no processo de um relatório do Infarmed, que só terá sido remetido ao Ministério Público em Janeiro de 2010, um mês depois da acusação, e que acredita ser “crucial” para o caso. Apresentou ainda prova de que o relatório que a coordenadora e o gestor do medicamento do Hospital de Santa Maria, com o aval da anterior administração desta unidade, remeteram às unidades não podia na realidade ter sido elaborado em 2007, como se diz na folha de rosto. Neste relatório é referido o sistema de gestão de stocks, Formed, que só foi instalado no hospital em Julho de 2009.